02 outubro 2005

Poesia e Outras Palavras de Ana Pereira

Tanto e Tão pouco
´
Era primavera e já a noite caía empurrando as réstias de sol que ainda espreitavam, quando junto ao jardim eu esperava pelo encontro marcado com uma amiga, para que seguíssemos juntas para casa. Reparei que bem perto de mim havia um caminho que atravessava o jardim para o outro lado da rua, e mesmo ali havia um banco, dos muitos que por aquele jardim havia, no qual estava um pobre mendigo arrumando suas tralhas e aconchegando-se naquele leito miserável improvisado, preparando-se para uma noite longa de fome, frio e tão só, tão vazia de tudo.
Enquanto eu esperava fui reparando no cuidado e amor com que ele tratava de seus haveres, que para muitos seriam meros trapos e tralhas sujas, mas que nas suas mãos mais parecia de um tesouro tratar-se. Entretanto, e assim que me apercebi que ele estava pronto para dormir, reparei que ele ficou atento e sempre que por ali alguém passava, fossem homens, mulheres ou mesmo crianças, ele acenava um adeus com um olhar inocente de criança e uma expressão marota de quem esperava ver uma reacção nos outros. Mas de todos os que por lá passavam ninguém lhe respondia. Num contexto daqueles, que não num filme de Hollywood - no mínimo seria um “tolinho” a dizer adeus a quem passava. Ele olhava-me com ar de malícia doce e encolhendo os ombros de desalento por cada um que por lá passava, pois realmente ninguém queria sequer reparar nele, olhar para ele, apenas e tão simplesmente dizer-lhe adeus também. Foi crescendo em mim uma vontade de lhe acenar sem que ele o fizesse primeiro, mas porque não me dizia ele adeus se afinal eu estava mesmo ali parada? Aquele olhar, aquela expressão não era de alguém maldoso ou indecente. Mas que queria ele? Que reacção queria ele provocar nas pessoas?
Finalmente chega a minha amiga, e eu, antes de partir fiz questão de o olhar pois sem que ele me pedisse eu iria dizer-lhe adeus. Mas ele rapidamente se antecipou e tal como aos outros, também agora ele me dizia adeus. Não me contive em lhe dizer simplesmente adeus, e de mãos unidas juntas à face também lhe acenei o gesto de “dorme bem”, e ele com um sorriso lindo e de braços abertos, me atirou um beijo imenso, e outro, e mais um, e mais e mais até que seus olhos me perderam em seu alcance.
Senti uma comoção e uma felicidade enormes porque eu senti que ele tinha conseguido o que queria, o que aos olhos de muitos seria apenas e tão simplesmente atirar um beijo, mas que eu senti ser muito mais que isso: - permitir-se a ele próprio deixar transbordar uma migalha do imenso afecto que devia estar contido nele próprio.

Diz-se que só aprendemos a valorizar a amizade quando já se perdeu um amigo, e sem querer contrariar isso eu acrescento: - pior do que suportar a ausência do amor que precisamos de receber, é ter de conter em nós próprios o amor que precisamos de dar.

Um beijo tal como um abraço: - tão simples ou tão pouco, o tanto que pode tão simplesmente ser!

2 Comentários:

Às 11:26 da tarde , Anonymous Anónimo disse...

Obrigada MaryJo. Cada vez que leio o que escrevi, cada vez me sinto mais pequenina.

 
Às 5:57 da tarde , Blogger L. R. disse...

lindo texto...achei seu blog pelo recanto das letras...
eu não tenho muito jeito para escrever esse tipo de coisa...
escrevo mais poesias...nada comparado...

 

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